Sofrência

Por João TRINDADE

“Bolei” de rir ao ler a seguinte matéria no “Diário de Pernambuco”, edição de 11 de fevereiro deste ano:

“Já ouviu falar em ‘sofrência’? Conheça o pernambucano criador do personagem (sic).

Termo nascido dos versos de dor de cotovelo do cantor Pablo foi cunhado por pernambucano febre de humor nas redes locais Fabinho Sofrência.”

E a matéria continua:

“(…) a voz arrastada, quase desesperada dos trechos à base da dor de cotovelo (…) deu margem à criação de um novo termo (sic) para se referir a um momento clímax da tristeza: a sofrência. A palavra virou selo, autentificado (sic), de sofrimento em incontáveis vídeos e áudios espalhados na Internet, nas redes sociais e, principalmente, no aplicativo dos smartphones WhatsApp.”

O pior é que o autor da matéria achou pouco e qualificou a “invenção” de neologismo.

Transcrevamos:

“O neologismo (…) passeia entre aquele que foi traído ou teve um amor não correspondido, ou seja, é uma variação da famosa ‘dor de cotovelo’ – tão bem sedimentada no imaginário nordestino pelas letras de brega, em especial com o rei Reginaldo Rossi.”

O VERDADEIRO AUTOR DE SOFRÊNCIA

Dói constatar, mais uma vez, a ignorância de um repórter da nova geração. Não é que todos sejam assim, mas infelizmente, é a maioria. Não pesquisam e são dotados de uma prepotência fora do comum.

O autor da matéria demonstra um total desconhecimento da cultura e, sobretudo, da Música Popular Brasileira.

Em 1968, num dos “Festivais da Canção” (Bienal do Samba), Billy Blanco (foto) apresentou, na voz de Jair Rodrigues, o “Canto Chorado”, letra (e música) em que, ousadamente, lançava o neologismo sofrência:

“Só mesmo a palavra sofrência
Que em dicionário não tem
Mistura de dor, paciência
Que é riso e que é canto também
Define Nordeste que canta
O canto chorado da vida
Pegando no susto, chuva tanta
Errou de lugar na caída.”

Observe o significado, referido pelo próprio autor:

Sofrência = mistura de dor e paciência.

E acrescenta:

“Define [a palavra sofrência] Nordeste que canta

O canto chorado da vida (…)”

Ou seja:

O sujeito “queima as pestanas” para ser Billy Blanco; cria um neologismo, para um Pablo qualquer da vida, ou um tal de Fabinho Sofrência usurpar a ideia.

Mas o leitor arguto ou, sobretudo, o fã desse tal de Pablo e companheiro poderiam objetar:

– E por que “sofrência” de Billy Blanco é neologismo e o de Pablo, não?

Por um motivo muito simples: Há critérios para a criação de neologismos. Não é uma simples questão “criar palavras”.

Observe que em “Canto Chorado”, num processo metalinguístico (talvez já adivinhando que o público iria estranhar a palavra sofrência), Billy Blanco explica:

“Nem mesmo a palavra sofrência
Que em dicionário não tem
Mistura de dor paciência (….).”

Observe-se que o autor se vale de duas palavras na língua para criar uma nova; o que caracterizou o neologismo. Neologismo é qualquer palavra nova criada por um autor que acrescente, estilisticamente, significado lógico ao léxico

Diferentemente do “procedimento criativo” de Pablo, ou de “Fabinho Sofrência”, que só fez trocar a palavra sofrimento por sofrência. Isso não é, evidentemente, neologismo; não há criação. Some-se a isso a apropriação da ideia alheia, perpetrada pelo “criador” ou “criadores”.

ORIGENS ETIMOLÓGICAS DE “SOFRÊNCIA”:

Sofrer (verbo): suportar, aguentar, padecer.
A palavra gera:
Insofrido: muito impaciente.
Sofredor: aquele que sofre.
Sofrença (século XIV) ; (antigamente) = sofrimento.
Sofrido = o que é alvo de sofrimento.
Sofrimento = dor; padecimento.
Sofrível = que não alcança o ideal (normal).

ATENÇÃO!

A palavra sôfrego (ávido) – século XVI – é de origem duvidosa e não tem a ver com sofrimento. É, provavelmente, relacionada com sofrer, mas o significado é outro. Gerou sofreguidão.

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OPCIONAL, MAS NEM TANTO!…

Observe, leitor, esta manchete que vi, há algum tempo, num jornal:
“Presos não votarão na Paraíba.”

Naturalmente, o repórter/redator (hoje em dia, em jornal, não há mais só repórteres) aprendeu na escola que é “opcional” o uso da vírgula quando o adjunto adverbial não estiver deslocado.

Puro engano. As gramáticas tradicionais e os professores tradicionalistas têm que mudar a terminologia em alguns assuntos. Não é que a norma gramatical tenha mudado, mas estudos existem para irmos aperfeiçoando o ensino (e ensinamento).

Nesses casos, é melhor falar assim:

Quando o adjunto adverbial não estiver deslocado, pode-se dispensar a vírgula.

Exemplo:

Ele era um dos maiores exemplos de atleta, na categoria dele.
Note que o sentido não se alteraria, se eu escrevesse:
Ele é um dos maiores exemplos de atleta na categoria dele.
Bem diferente é a situação do exemplo relatado:
“Presos não votarão na Paraíba”.
A redação correta seria:
Presos não votarão, na Paraíba.
Se mantivermos a redação original da notícia, teremos:
“Presos não votarão na Paraíba”.

Isso quer dizer que todos os presos do Brasil votavam, antes, na Paraíba, e agora não votarão mais.

Outro exemplo. Este, retirado da coluna de Maurício Stycer (Folha de São Paulo):

“Carlos Henrique Schroder, diretor geral da rede Globo, foi homenageado nesta semana pela Associação Brasileira de propaganda, com o título de profissional do ano.

Ao receber o prêmio, agradeceu ao (sic) comprometimento dos funcionários da emissora ‘que tem nos levado a ser (…) a primeira opção para quem realmente tem o poder de escolha nas mãos, o controle remoto (…)’.

Uma semana antes do discurso de Schroder, nos EUA, uma das maiores redes de TV do país, a CBS, e o canal pago (…) HBO anunciaram projetos que apontam para a aposentadoria do controle remoto tal como o conhecemos.”

Observa-se que na passagem: “Antes do discurso de Schroder, nos EUA, (…)”, o colunista pecou por excesso, ao radicalizar no uso da vírgula e seguir, rigidamente, o padrão gramatical.

Da forma como está redigido o parágrafo, com o adjunto adverbial isolado por vírgula, tem-se a ideia de que o diretor da Globo estava nos EUA.

O redator levou ao paroxismo a regra gramatical que diz que estando o adjunto adverbial deslocado, e no meio da frase, fica entre vírgulas (estas, “obrigatórias”).

Só que, no emprego da vírgula, às vezes é preciso desobedecer aos ditames gramaticais, sob pena de prejudicarmos o contexto, a ideia e a compreensão da frase.

A redação deveria ser:

“Uma semana antes do discurso de Schroder, nos EUA uma das maiores redes de TV do país, a CBS, e o canal pago (…) HBO anunciaram projetos que apontam para a aposentadoria do controle remoto tal como o conhecemos.”

Ou, de forma mais correta ainda:

“Nos EUA, uma semana antes do discurso de Schroder uma das maiores redes de TV do país, a CBS, e o canal pago (…) HBO anunciaram projetos que apontam para a aposentadoria do controle remoto tal como o conhecemos.”

Mais estilo e menos gramatiquice, por favor!

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